2008-01-07

Sócrates? Quem é? Não o conheço

Faleceu o abjecionista, o maldito mais bendito da literatura portuguesa. Como não me sinto à altura deste post, deixo a transcrição da última entrevista de Luiz Pacheco. (Correio da Manhã, 08.04.2007)


Os óculos pesam nos olhos que cegaram. À cabeceira, o jornal ‘Avante’ e um livro de José Gomes Ferreira não são bibelôs, mas companhias. Luiz Pacheco, criatura de inteligência rigorosa, de lucidez sobrenatural, um livre pensador que disse e diz coisas que não são fáceis de serem ditas, está preso a um cadeirão, tem o robe vestido, o aquecedor ligado e uma manta para o frio não lhe magoar o esqueleto. Nasceu em Lisboa, na Rua da Estefânea, a 7 de Maio de 1925, pai de oito filhos – frutos de muitos amores, na vida escolhida, que foi dura por prazer, só fez o que bem entendeu.

O Estado Novo prendeu-o por politiquices e por ter amado menores. Frequentou o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras e a meio mandou o curso dar uma curva ao bilhar russo. Entretanto, a Inspecção de Espectáculos admitiu-o como agente fiscal, mas sedentarismo não combinava com o seu feitio. Preferiu a situação que considera invejável: desempregado. Depois, funda a editora Contraponto onde a corrente surrealista viu muitos dos seus autores publicados. Crítico literário e cultural, tradutor, colaborou em diversos jornais e revistas, ‘O Globo’, ‘Afinidades’, ‘Seara Nova’, ‘Diário Popular’. A sua escrita caracterizada de irreverência e de poesia esbofeteou a torpeza intelectual e desafiou o lápis azul da censura salazarista. Luiz Pacheco, que, em tempos, se fez sócio do Benfica para ir aos bailes e do Sporting para ir à natação, já não dança e não aprendeu a nadar. Apesar de ter andado perto do fundo, acaba por vir sempre à tona e ao seu ritmo.




Tinha dito que não saía do lar do Príncipe Real. Afinal, enganou-se. Vive com o seu filho.

Um gajo também se engana! A vida nos lares é uma espécie de regimento. Horários. E mais horários. E eu estive em três. O pior era a convivência com os moribundos e as moribundas. Deprimente. Os tipos iam buscar os velhos às camas e espetavam com eles num buraco a que chamavam sala do convívio. Qual convívio? Convívio nenhum! Velhotes com os olhos fechados e outros que estavam nas últimas. Ah... e havia um animador que se punha a contar de um até ao número dez. Quando a gente pensava que o tipo ia fechar a goela, desatava a dizer a numeração em forma decrescente. Ele fazia coisas incríveis! Mandava pôr a mão para cima, para trás, para os lados. Eu sei lá. O último lar era muito mau. Tinha lá uma mulata que era cleptomaníaca. Roubou uma velha muito afanada e eu também fui roubado.

O Luiz é que não está nada afanado...

Eu não estou afanado? A miúda deve estar a brincar! Eu não estou nada bem. Tenho muitas doenças, talvez umas vinte e três. Agora tenho uma merda chamada incontinência. Para um gajo é muito mau andar de fraldas. Mas a vista é a pior das mazelas.

Se fosse menos teimoso já tinha sido operado.

Não conte com isso! Tenho medo. E não é da anestesia. Medo das consequências. A merda da operação pode provocar um acidente cardiovascular e já viu o que era? Dizem que é coisa muito simples, mas isso são conversas. Nessa eu não caio!

Voltar a ler não é um estímulo?

Oh miúda, eu já li muito. Nem queira saber o que eu já li. Agora é a minha filha que me lê os artigos de jornais e algum livro que eu queira ler. Ocupo o raio do tempo a ver a RTP Memória. Estou a ver coisas que nunca tinha visto. Como por exemplo, o Júlio Isidro, o Zip-Zip. Gosto de ver velhadas. Entretenho-me com o humor fabuloso do Vasco Santana, do António Silva. O Solnado é uma merda. Uma invenção. Um disparate. O Herman José é diferente. Basta ser de origem alemã para saber o que está a fazer .

O melhor aluno do Liceu Camões gosta de velhadas...

Não me faça rir. Mas fui o melhor daquela malta toda. Entrei em 1936 e fiquei lá oito anos. Sentava-me sempre na carteira da frente, porque os meus olhos já eram dois sacanas. O avô desse tipo chamado Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Nós cagávamo-nos no gajo.

Quem eram os seus colegas?

Lembro-me do José Manuel Serra, que foi director do Teatro Nacional de São Carlos, Lobo Saias, que chegou a ministro, e outros.

Os liceus não eram mistos, portanto, miúdas não eram peras doces...

Imagine que nem podíamos chegar ao pé de uma escola feminina. Quando chegou a altura da universidade, o convívio não foi fácil. Não estávamos habituados. Pedir um lápis emprestado era cá uma trabalheira. Só para não haver contacto, deixávamos cair o raio do lápis ao chão.

Entretanto, os contactos melhoram... esteve preso no Limoeiro devido a aventuras amorosas.

Prenderam-me por razões políticas e por ter desflorado umas garotas que eram menores. Mas atenção: eu também era menor! Uma ocasião foram duas irmãs ao mesmo tempo. Foi cá uma chatice... Antigamente, rapazes e raparigas faziam o que hoje fazem, mas com a diferença: não tinham o à-vontade que existe hoje. A pílula foi a estrondosa revolução. Ouvir dizer que, até, os homens já podem tomar essa merda. Eu nunca tomei. E sou contra o aborto. Hoje em dia as garotas têm muitas facilidades...!

Um rol de contraceptivos e a pílula do dia seguinte

O que é isso? O comprimido do dia a seguir à cegada?

Sim. É contra o aborto e a favor da despenalização?

É claro! Prender moças é um autêntico disparate. Mas há malta que diz que aborta porque rejeita ter filhos indesejados. Ouça cá uma coisa: uma rapariga que se deita com um rapaz sabe do risco. E há outra malta que diz que não consegue criar filhos. Mentira. É só conversa. Eu sem cheta, desempregado, tenho oito filhos. Uma vez, fui deixar um filho à Casa Pia. Se os ‘gansos’ eram bem tratados? Coitados. Aquilo era uma miséria.

Voltando à prisão. Como era no Limoeiro?

Uma prisão para os gajos que esperavam julgamento. Havia batota que não era a feijões, mas a dinheiro. Estava lá um enfermeiro tarado que vendia penicilina misturada com água. O refeitório era umas mesas corridas e havia um tipo que distribuía a comida. Os acordos davam direito ao prato ficar mais cheio. Naquela merda havia estratos sociais. A Sala dos Menores, a Sala dos Primários, para os estreantes, a Sala Comum, que era para a maralha, e a Sala dos Bacanos, onde estavam aqueles que tinham conhecimentos fora da prisão. Como eu. Da segunda vez que estive dentro, o Artur Ramos telefonou ao pai, que era director-geral da Penitenciária e pôs-me cá fora.

Um homem que nunca gostou de regras nasceu no seio de uma família de militares...

Não venha com as perguntas feitas de casa. O meu avô materno era capitão-de-mar-guerra, engenheiro maquinista, e o meu avô paterno, coronel da artilharia, dirigiu o Arquivo histórico-militar. Eram militares, mas pareciam ser outras pessoas. Tinham boa cara. O pai do meu pai, aquando da primeira incursão monárquica, comandada pelo Paiva Couceiro, foi a Chaves dar umas bombadas nos canhões e teve de fugir. O meu pai estava a tirar o curso na Faculdade de Letras para ser diplomata, mas como aconteceu a Primeira Grande Guerra, a diplomacia foi para o galheiro. Não acabou o curso. Nem eu.

Por razões diferentes?

Sim. Os professores na Faculdade de Letras eram uns chatos. Excepto o Vitorino Nemésio (que me deu 18 valores) e o Delfim Santos. Nunca engraxei o Nemésio, eu não era igual ao Urbano e ao David. Mas espere aí, deixe-me falar do ano que antecedeu a faculdade. Em 1943, quando acabei o liceu, o meu pai disse que não tinha dinheiro para eu estudar na Faculdade. Falou com o professor João de Brito, que me deixou assistir às aulas. Eu era um aluno fantasma. Não me perguntavam nada, o que era maravilhoso. Nos intervalos ia para a biblioteca. Devorei Gil Vicente, Garcia de Resende, Fernão Lopes e outros. Por essa altura comecei a dar explicações. Portanto, aprendia e ensinava. Foi um ano em cheio! No final, fiquei muitíssimo bem classificado no exame de admissão à Faculdade de Letras de Lisboa, no Curso de Filologia Romântica, e consegui ficar isento das propinas.

Saiu da faculdade e, em 1946, foi admitido como agente fiscal da Inspecção de Espectáculos.

Aquilo era uma treta. Não inspeccionávamos nada.

Quando é que funda a editora Contraponto?

A editora começou a funcionar em 1951, logo depois do primeiro número da revista. Nasceu no ensaio de uma terceira via e só tinha um critério: os gajos do Estado Novo não podiam entrar. Vivia um bocado à mercê do facto de eu e o Jaime Salazar sermos amigos. Quando foi publicado o ‘Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano’, de Mário Cesariny, o Jaime ficou fodido. Pensava que a editora era só para ele. Mais tarde, o mesmo aconteceu com Cesariny, quando Herberto apareceu. Razão tinha o Gaspar Simões em chamar- -me ‘O sacristão do Surrealismo’, por publicar aquela gajada. Não faz muito tempo, vendi a editora à irmã do Manuel Alegre por um preço de merda.

Era amigo de Cesariny?

Essa pergunta traz água no bico. Dizem que nós éramos amantes. Um disparate. O gajo não fazia o meu género. Eu nunca tive a mania de Paris. Ele tinha.

A sua colaboração nos jornais começou no ‘O Globo’, em 1945, e ainda há dez anos escrevia na imprensa

O Nicolau Santos, que na altura era director do jornal ‘O Público’, convidou-me para escrever uma crónica. Os gajos até pagavam bem. Mas tiveram o azar de anunciar Luiz Pacheco escritor polemista. Dava-lhes jeito que eu desse porrada. Mas durante meses não lhes fiz a vontade. Podem contar comigo para dar porrada, mas jamais por incumbência.

É verdade que, uma vez, enquanto traduzia um livro, esteve quase para ser publicado um palavrão?

Publicado não digo, mas aquilo fez-me correr. Eu estava a traduzir um livro para crianças e havia uma palavra cujo significado em Português eu não encontrava. Para não me esquecer escrevi a vermelho caralho. Quando me lembrei... falei à editora, que me disse que o livro já estava nas mãos do revisor. Corri para a casa do gajo. E lá estava o caralho marcado a vermelho, mas fui a tempo. O caralho foi substituído por penacho.

É autor de muitos livros, mas nunca escreveu romances.

Porque é preciso ter disciplina. Mas não é como escritor que posso ser importante. Se me perguntarem da minha importância é como editor. Editei muitos livros que eram muito baratos. Tinha bons autores, Raul Leal, Natália Correia, António Maria Lisboa, Herberto Hélder, Vergílio Ferreira, Mário Cesariny. Jamais editaria, por exemplo, o Fernando Namora. Ele era um aldrabão. Ou o José Agualusa, que não escreve nada. É um pateta alegre.

O que é preciso para escrever bem?

Ler muita coisa. Estar atento. E há gajos que escrevem sem nunca terem lido uma frase.

Gosta da escrita de António Lobo Antunes?

Muito. Gosto quando ele fala do bairro onde nasceu, Benfica. Tem muitas qualidades e anos de escrita. Mas é um bocado apanhado da pinha. Também tem a maluqueira de dizer que não consegue viver sem escrever. E tem razão. Ele é o escritor mais internacional de Portugal.

E José Saramago?

Também, embora de maneira diferente. Mereceu o Nobel. Saramago e o Lobo Antunes têm uma coisa em comum: são escritores que já só escrevem para o estrangeiro.

O que nos diz dos políticos?

São uns merdas. Comparados com eles próprios. Aquela que foi ministra das Finanças era uma tipa séria, mas era cá um camafeu.

Gosta do José Sócrates?

Quem é? Não o conheço.

Mas gosta de Pedro Santana Lopes?

É um ‘bom vivan’. Não deixou obra nenhuma, mas sabe viver. Andava nas discotecas e estes gajos – o pequeno, o gajo que é quase anão – fez-lhe a folha. O Santana é um senhor. Gosta das noites. E bebe o seu copinho. Eu deixei de beber há uma semana. Ao almoço bebia vinho – tinto, pois está claro. Quando se fala em vinho fala-se em tinto.

João Soares, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa, fez-lhe uma visita e trouxe-lhe umas garrafas de tinto.

E que belo tintol! Apareceu no Natal, com um funcionário. Trouxe-me vinho, um belo presunto e livros. Vinha com a ideia maluca de eu fazer um artigo sobre o governador do Costa do Castelo.

O País reconhece as pessoas?

Não podemos falar de um só País. De Lisboa ao Porto existem dois países ou, talvez, existam quatro países em Portugal. Por exemplo, o Mário Soares, quando era Presidente da República, deu-me 650 contos. Uma vez, no Chiado pedi-lhe 20 paus emprestados. E ele deu-mos. Este presidente, o actual, que tem aquela cara, não me deu nada.

Vive de alguma pensão?

Tenho um subsídio de 120 contos, graças ao Alçada Batista. E também ao Balsemão, que teve a feliz ideia de inventar o decreto do mérito cultural. O Santana despachou um decreto que favorece pessoas que estão na minha situação. Mas não é por isso que gosto do rapaz. O tipo sabe o que é bom. O que é bom para mim são umas garotas, que vêm cá de manhã para me fazerem a higiene. Não é mau.

QUESTIONÁRIO

Um País... Montijo

Uma pessoa... D. Afonso Henriques

Um livro... ‘Gustavo, o Estroina’, de Paulo Koque

Uma música... ‘Variações’ de Golberg

Um lema... Não me lixem. Não me chatem

Um clube... Clube Jardinense, o clube do Montijo

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