2008-02-26

Histórias de Encantar - I



Demasiado cedo, dá um beijo à Vanessa e levanta-se ainda com cheiro a couratos e a óleo de motor. Na noite passada esteve a arranjar um Renault 5 até às 4 da manhã, por causa do carter que não passava em 3 sítios. Vai à casa de banho, faz a barba com uma gilette do pingo doce e põe o after-shave da Ferrari que a mãe lhe ofereceu nos anos.
"Hoje é o grande dia"
Toma o pequeno almoço - a habitual mini Sagres e uma sandes de atum - e corre para o autocarro. Vestido com o fato comprado nos saldos da C&A por ocasião do casamento da Fernanda, a gravata cor de laranja, os sapatos de vela - da feira de Sacavém - e os óculos de sol colocados não no nariz, mas na testa.
"Ó Zé Rui!!! Zé Rui!!! - Esquecestes-te do almoço"
Volta atrás e recebe da Vanessa (ainda em camisa de dormir) o tupperware com o seu prato preferido: arroz com ervilhas e chouriço frito. Zé Rui detesta ervilhas, mas nunca lhe disse, para não a magoar.
Já no metro, pensa no BMW importado que poderá comprar com o aumento.
"É só fazer boa figura na entrevista e o lugar de chefe de secção é meu..."
Ajeita os óculos para não caírem das sobrancelhas e pensa em frases inteligentes. Não lhe ocorre nenhuma. Nada... Pensa então com todas as forças e lembra-se que o Manuel Luís Goucha é que fala bem.
"Ainda bem que o Goucha não vai à entrevista, eheh!", pensa Zé enquanto sai na estação de Odivelas. Apanha a carreira das 9h que passa por Bucelas.
À entrada da fábrica, cumprimenta Gomes, o securita, e sobe até ao 2.º andar. Já lá estão a puta da Felisberta, o Tó e o Hugo Esteves, esse cabrão que um dia o gozou por vir de chuteiras para o trabalho. Um por um, entram e saem com a mesma expressão, sem deixar adivinhar como correu. Zé Rui continua a pensar numa frase que impressione o chefe, cada vez mais nervoso e sempre a pensar no BMW azul-petróleo. Ocasionalmente lembrava-se do jogo que arbitrou no domingo passado, o dérbi Sacavenense-Alhandra F.C. e pensava no som do apito que o cunhado lhe dera no Natal. Mas esse pensamento foi cruelmente interrompido.
"Próximo!"
Entra no gabinete, ainda com os óculos de sol na testa, mas com o seu fatinho bem passado e lá vai respondendo às perguntas e provocações do chefe. A gravata dele também é cor de laranja. Bom começo.
"Até está a correr bem. Falta é a frase...", pensa Zé.
O Dr. Ramiro pergunta-lhe o mesmo que tinha perguntado aos outros: "Ó Sr. José, imagine que é chefe de secção e que um subordinado seu chega, invariavelmente, 15 minutos atrasado, tem baixo rendimento e é incapaz de trabalhar 30 minutos sem fumar um cigarro. Se ele mete baixa e só volta um mês depois, o que é que você faz?"
Zé Rui pensa como chefe, respira chefia... Decide que é agora ou nunca: vai soltar a tal frase.
"Eu, Dr. Ramiro, seria implacável. Ah pois é. Dizia-lhe «está despedido!» logo assim de repente, sem um pêlo nem um agrafo."

10 comentários:

José Castro disse...

Ler este post foi, sem dúvida alguma, uma das mais estranhas experiências por que passei ultimamente.

Li. Gostei. Mas não percebi o que se passou.

Vem aí mais? Espero que sim. Um livro, talvez?

tiagugrilu disse...

Jac: Obrigado. Este é o início de uma série de histórias de encantar, onde conto relatar um dia na vida de alguém, dos mais variados extractos sociais. É uma espécie de exercício de análise social com parvoíce à mistura.

...Agora perceber, perceber... nem eu percebi.

:)

tiagugrilu disse...

Foi tudo devido a um tipo que vi no metro, exactamente com o fatinho da C&A, gravata cor de laranja e sapato de ir ao figo...

Minha feia disse...

Bolas!!! Gostei! Está mesmo bom! E falo a sério! Bem... mas com a musa inspiradora que tiveste, é natural que o conto tenha ficado tão fixe ;) Estou ansiosa pela próxima história! Já pensaste fazer stand up comedy?

tiagugrilu disse...

...Não, pá, isso ia dar stand up tragedy...

Borboleta disse...

gosto! dos pêlos, dos agrafos e de tudo o resto. coisas à la Grilo, sem dúvida. e esta maniazinha da frase que marca é uma coisa deliciosa, muito tuga, que vale a pena registar :)

tiagugrilu disse...

É a chamada linha do soco.

Bruninha disse...

Grilo, um verdadeiro observador social...!

Anónimo disse...

Alhandra F.C. não existe... pelo menos, não em Alhandra. O Post está fixe!

tiagugrilu disse...

O Alhandra F.C. existe bem no fundo de cada um de nós.

eheh!