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O episódio que se segue teve lugar há cerca de 2 meses, e até hoje não o tinha colocado aqui, devido ao pacto de não-agressão que foi estabelecido entre cavalheiros naquele dia. Passa-se que o meu cavalheirismo tem andado em acesas sessões de porrada com a minha parvoíce, acabando obviamente por levar nas trombas. O cavalheirismo, nunca a parvoíce.
Respondi a um anúncio de emprego para um canal de televisão. A proposta era interessante: pedia candidatos com interesse pelo desporto em geral e propunha uma carreira no meio audiovisual, nas funções de descrição e indexação de imagens. Enviei o meu CV, com a certeza de pelo menos o "Não" estar garantido. Qual não é a minha surpresa quando no dia seguinte toca o telemóvel e me perguntam se posso ir a uma entrevista. "Claro que sim. Onde e a que horas?".
Cheguei ao local e na sala de espera havia uma parede coberta de LCD's, cada uma a passar um desporto diferente: futebol, ténis, atletismo, rally, etc. Fui confirmando que, embora não fosse especialista em nenhuma das áreas, tinha uma cultura geral que me permitia, com alguma prática, trabalhar sem problemas de maior.
"Errr... Dr. Tiago Grilo?"
"Sim, sim, boa tarde..."
"Faça favor"
E aquele homem calvo e cordial mostrou-me o caminho para o seu gabinete. "Sente-se", "esteja à vontade" e tal e coiso e a conversa começa assim:
"Olhe, Dr. Tiago, antes de mais deixe-me dizer-lhe que eu não sou doutor"
Eu, calculando que aquele gabinete não fosse a triagem do Hospital de S. José:
"Ok. Eu pedia-lhe que me tratasse por Tiago, porque não me identifico muito com essas designações."
"Muito bem, Tiago, estive a analisar o seu currículo e... confesso que fiquei impressionado. Uma licenciatura, duas pós-graduações e está a frequentar um mestrado..."
"Exacto. E é exactamente pelo tema da dissertação ser esse que me interessa a experiência no meio aundiovisual. (bla bla bla bla)..."
"Sim, sim, hoje em dia (bla bla bla bla)..."
Tudo muito bonito. Até que o homem se vira e diz:
"Bem, as minhas entrevistas de trabalho são diferentes das outras e sou muito criticado por isso. É que muita gente leva isto a mal..."
Eu, de pé atrás, pergunto o porquê de tanta introdução e ele explica-me que tem que fazer perguntas muito específicas sobre desporto, a fim de perceber se sou ou não indicado para o trabalho. E eu tudo bem.
"Posso então prosseguir?"
"Sim, sim, claro."
"Tem a certeza?"
"Sim...?"
"Ok. Então tome aqui esta folha em branco e escreva-me aí a Selecção Nacional."
"Ãn...!?"
"Sim, imagine que é o Carlos Queirós e indique a sua Selecção"
"O Carlos Queirós...? Mas..."
"Não tem que concordar com o que ele faz e se é ou não o indicado para estar à frente da Selecção, faça só a equipa."
"Então mas... Tipo, desenho um campo da bola?"
"Faça como quiser. Depois discutiremos a fundo cada opção sua e vai-me justificar o porquê de ter escolhido o jogador x e não o y, por aí fora."
[O sorriso com que ele dizia isto e que denunciava a sua paixão por futebol, fazia lembrar o sorriso que eu faço quando falo em "mariscada e vinho verde"]
"Então mas... Mas..."
"Vá, escreva aí uma equipa!" dizia ele, de sorriso rasgado, ávido de converseta sobre o esférico rolando sobre a erva.
Eu, que sou aquele gajo que vai aos tascos ver a bola e andar bitáites mas que no fundo não pesca nadinha daquilo, fiquei a pensar que uma mini e uns caracóis eram capazes de me ajudar a desembuchar. Como benfiquista que sou, fiz uma baliza e meti lá escrito "Quim". Mas foi só isto. Uma folha A4 com uma baliza e um Quim. Começo a olhar para aquilo e começo a rir-me e a pensar "Tiaguinho, onde é que tu te foste meter...?"
"Ouça, eu não vou fazer isto."
"Então mas... Vá, escolha os jogadores que quiser!"
"Não, você não está a perceber... Eu não sou a pessoa que vocês procuram."
"Então mas... E não escolhe os jogadores?"
"Epá, não. Eu até podia meter aqui uma equipa e argumentar consigo, mas íamos chegar a um ponto em que você percebia que eu não tenho a cultura futebolística de que está à espera."
"Então, mas não desista! Se estivesse a ver uma gravação de um treino da Selecção, você não os reconhecia todos?"
"Sim, reconhecia, mas se o Carlos Queirós se lembrasse de convocar um gajo qualquer do Leixões, garanto-lhe que não o reconhecia."
"Mas escreva lá a equipa!"
"Epá, não!"
"Pois... É que nós precisamos mesmo de uma pessoa que seja um apaixonado do futebol, percebe? Alguém que respire desporto. Não leve a mal, Tiago."
"Eu? Nada. Se estivesse no seu lugar, fazia exactamente o mesmo tipo de entrevista. Não precisa de me dizer nada, eu já lhe disse que não sou a pessoa que procuram."
"Pois... É que quando eu coloquei o anúncio, não exigia assim grande formação académica. Eu preciso de uma pessoa que saiba de futebol e que saiba escrever."
"Pois, eu já percebi isso. Respondi ao anúncio porque pensei que se tratasse de desporto em geral, várias modalidades entre elas o futebol, e que com a prática me especializaria na descrição e indexação onde fosse necessário..."
"Não, aqui nem precisamos de competências técnicas. É só de alguém que perceba de futebol. Um apaixonado."
"Você não imagina a quantidade de pessoas que eu conheço que se encaixam nessa descrição... Só que não sabem é escrever... Eheh..."
[silêncio de gajo que não percebeu a piada]
"Pronto, senhor Tiago, é como lhe disse... Se conhecer alguém..."
"Esteja descansado, que eu dou o seu contacto."
"Então adeus, e obrigado pela frontalidade. Foi muito digno da sua parte. Sabe... é que já tive aqui discussões com pessoal que queria o lugar, que nem lhe passa pela cabeça..."
Despedi-me e saí, com um sorriso nos lábios e a sensação de que algo mítico acabara de acontecer. E eu tinha provas:
- No bolso, uma folha A4 com uma baliza e um Quim.
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